terça-feira, 4 de março de 2008

CARLOS AUGUSTO STRAZZER










Entrevista publicada em 27/05/1992
A opção pela vida
O ator admite que está com Aids
Ele descobriu que está com Aids há três anos e já sofreu várias das manifestações mais terríveis da doença. Passou oito meses num hospital, viu amigos queridos lhe darem as costas, outros discriminados porque permanece­ram a seu lado. Mergulhou, segundo suas palavras, no bíblico vale das sombras. Teve raiva, revolta, vonta­de de morrer logo para acabar com o sofrimento. Passou por uma expe­riência mística e encontrou dentro de si força suficiente para ficar ainda mais um tempo" ao lado dos três filhos e das pessoas mais amadas. Aos 46 anos, o ator Carlos Augusto Strazzer, o pérfido conselheiro Cres­py Aubriet da novela Que Rei Sou Eu? E o místico Argemiro de Man­dala, está de volta à ativa. Ele assina a direção da peça Dorotéia, de Nel­son Rodrigues, que estreou sexta­feira passada, no Rio de Janeiro.
Não foi uma volta suave. Cercado pelos cochichos sobre a doença que o havia mantido fora de cena nos últimos tempos, Strazzer resolveu abrir o verbo - e o coração. Na semana passada, ele declarou publicamente pela primeira vez que tem Aids. A decisão levou tempo para amadurecer. "Este assunto em tratado de forma muito preconceituosa e desrespeitosa. Por que eu me exporia para ser achincalhado? Não estou em julgamento Nem eu, nem nenhum outro doente, seja de Aids, de câncer ou de lepra”diz Strazzer, bissexual assumido que acredita ter se contaminado com o vírus da Aids em uma relação sexual há cerca de dez anos, quando a doença e suas formas de transmissão ainda não eram conhecidas. Sem nenhuma aura de herói dos tempos da Aids, e com uma serenidade conquistada a duras penas, Strazzer fala nesta entrevista a VEJA sobre sua experiência - a experiência limite pela qual todo ser humano inexoravelmente vai passar, mas na qual só os que convivem com a mortete são obriga dos a pensar. Alguns, como Strazzer, aprendem muita coisa.
VEJA- Por que o senhor decidiu tornar público que tem Aids?

Strazzer- A doença é uma coisa mais natural para mim, agora. Eu tive todo um processo de aceitação, de compreensão do que estava vivendo. Fui obrigado a fazer um recolhimento. Primeiro, porque tive de combater crises físicas muito sérias e tinha de estar completamente concentrado nesse embate pela minha saúde. Segundo, porque imagem ficou ligada a esse problema. Mas não foi uma decisão clara falar sobre a Aids. Não estou levantando bandeira alguma. As pessoas não separam a minha vida particular, meus problemas pessoais, da minha vida pública.
VEJA- O senhor sentiu-se mais maduro para falar sobre o assunto?

Strazzer - Sim. Assim como eu amadureci, talvez a imprensa tenha amadurecido. Desta forma, me sinto disponível para conversar, debater, contar a minha experiência, que pode ser útil para outros doentes, parentes de doentes e para quem não tem o suporte espiritual e financeiro que eu tenho. Sou contratado da Rede Globo e, além do meu salário, a empresa paga todo o meu tratamento, que é extremamente caro. A Globo paga todos os meus remédios e internações e vem renovando anualmente o meu contrato. Sou um privilegiado.
VEJA - A Aids mudou a sua maneira de encarar a morte?

Strazzer- Sempre fui fascinado pela morte. Eu sempre fui um especulador das ciências ocultas, um estudioso do espiritismo cristão, de religiões que tentassem explicar a morte de uma forma menos ingênua que a cristã tradicional. Desde adolescente, eu reflito sobre o que poderá acontecer após a morte. Quando a Aids veio, achei que minha hora havia chegado. Pensei em morrer educada e dignamente. Não podia decepcionar a galera. Afinal, por tudo o que eu havia lido, ter Aids significava ficar com aquela figura cadavérica publicada pelos jornais e morrer. Até que eu percebi que havia uma possibilidade de não ser assim.
VEJA - Como surgiu essa possibilidade?

Strazzer - Não foi um médico quem me deu isso. Veio de foro íntimo, de esforços consideráveis para compreender o que estava acontecendo e não me entregar. Eu tenho um poder dentro de mim, que é um poder decisório, uma vontade. Tenho que ter vontade de viver e descobri motivações verdadeiras para continuar vivo. Essas motivações estão ligadas às pouquíssimas pessoas, que atravessaram comigo o vale da sombra da morte, inesquecíveis amigos que conseguiram imprimir na minha alma e no meu coração uma vontade de estar com eles ainda mais um tempo. Meus três filhos fazem parte desse grupo. Mas tenho uma amiga, por exemplo, cujo ex-marido ameaçou tirar a filha da guarda dela se ela continuasse me ajudando no hospital. Esse ex-marido é da classe teatral e hoje me cumprimenta como se nada tivesse acontecido.
VEJA- Não é apenas o doente de Aids, então, que enfrenta o preconceito?

Strazzer - De jeito algum. As pessoas que ficaram do meu lado enfrentaram um preconceito muito sério, cíúmes de marido, ameaças de mãe. Esse esforço atingiu meu, psiquismo e meu coração. Percebi como era bom o amor, esse amor que só doa. Eu não tinha nada para oferecer, a não ser dor, dor, dor.
VEJA - Quando o senhor soube que estava com Aids?

Strazzer - Estava fazendo a novela Que Rei Sou Eu? Tive uma grande crise e houve muitos erros médicos e laboratoriais. Os exames davam negativo e só descobriram a doença quando eu fui para São Paulo quase morrendo. Fiquei meses sem saber o que tinha. A doença oportunista que primeiro apareceu foi sífilis secundária. Fiquei com feridas no corpo inteiro, do couro cabeludo à sola do pé. Permaneci internado oito meses.
VEJA- O senhor teve vontade de morrer?

Strazzer - Não exatamente. Eu achei que a agonia era uma coisa muito sem graça. Será que não existia outra forma de morrer, na qual eu não tivesse que passar por aquela dor, aquela porta estreita, aquele buraco de agulha? Mas tive vivências muito particulares nesses momentos. Foi bom analisar quem era eu e qual era a minha historinha. E minha historinha era quase medíocre, mas gostei dela. Não fui um grande sujeito, nem um grande ator, mas era um cara legal, bom caráter, tinha vivido bem, cercado de bons amigos, com três lindos filhos e uma ex-mulher maravilhosa. Comecei a montar a minha biografia: Carlos Augusto Strazzer nasceu assim, foi um adolescente, em adulto fez uma porção de coisas; aí pegou uma doença terrível e morreu. Que morte boba! Será que não dava para mudar o script? Que final piegas e melodramático... Tive, então, vontade de mudar o final.
VEJA - Aconteceu alguma coisa que propiciou essa virada?

Strazzer - Eu estava muito mal e não agüentava mais sentir tanta dor física. Comecei a rezar, mas me senti meio ridículo, beato, e questionei se Deus existia mesmo. Mas a dor era tanta que a revolta passou e eu rezei o pai-nosso mantricamente, ou seja, pensando em cada frase. Quando cheguei no "seja feita a Tua vontade", não consegui continuar. Se ou acreditava que Deus estava em mim e não era um velhinho de barbas brancas inacessível, mas um estado de consciência interna, então eu tinha de entrar em contato comigo mesmo. "Seja feita a Tua vontade" não significava a vontade de alguém de fora em relação a mim. Abriu-se um telão azul deslumbrante e uma voz, muito parecida com a minha, só que em dolby-stereo, me perguntou se eu queria a cura ou não.
VEJA - Qual foi sua resposta?

Strazzer - Meu primeiro instinto foi dizer "sim”. Mas será que era isso mesmo? O outro lado era tão maravilhoso... Por que eu iria ficar nesta Terra tão complicada? Aí, a voz me disse que eu precisava querer alguma coisa, que eu devia usar a vontade correta. Eu precisava de uma motivação para viver, senão minha vontade não seria legitima. Pensei nas opções. Voltar a fazer novela e brilhar? Gostaria. Mas, depois, seria nio bobagem. Fazer uma peça de teatro e ganhar prêmio? Seria maravilhoso, mas viraria também bobagem. Fazer uma viagem, visitar Paris de novo? Tudo bobagem. Puxa, será que eu não tinha nenhuma motivação para viver? Aí, apareceram nessa tela azul os três rostos dos meus filhos. Eles me pediam para ficar. Descobri que queria mais um tempo aqui e dar a eles um pouquinho de conforto 3 estruturação psicológica, para que os meus filhos segurassem a barra quando eu fosse embora. Acho que é por isso que continuo aqui.
VEJA - O senhor estava no hospital quando isso aconteceu?

Strazzer - Eu estava em meu apartamento no Rio, antes de ir para o hospital e começar minha saga. Não aconteceu de eu viver essa experiência e no dia seguinte ficar bom. Fui internado, entrei em coma, tive sofrimentos consideráveis que não teria suportado se não tivesse passado por aquele momento. Fiquei sem veias, porque tinha de tomar injeções de antibiótico de seis em seis horas. Tinha uma sudorese; tão intensa que trocava de lençóís e de roupas quinze vezes por dia. A diarréia era tão forte que eu ia ao banheiro umas trinta vem por noite. É intenso o sofrimento de uma pessoa doente de Aids. Se quem tem preconceito tivesse uma noção mínima do que é esse sofrimento, não ousaria ir com pensamento negativo frente a um doente.
VEJA - Além da sífilis, o senhor teve outras doenças oportunistas?

Strazzer - Desenvolvi doenças viróticas, tuberculose, um monte de coisas ao mesmo tempo. Era um inferno, uma dor só. Nessas horas, apareceram aquelas pessoas infinitamente amorosas que, quando eu não agüentava, simplesmente deitavam sobre mim, me abraçavam e ficavam me beijando até eu conseguir sentir o calor físico delas. Quando eu acordava com febre de 40 graus, definhava, pesava 50 quilos, essas pessoas puseram a mão na massa. Eu tive anjos da guarda.
VEJA - Como é seu tratamento?

Strazzer - Tomo AZT e cerca de trinta remédios por dia. Cheguei a tornar 45 remédios, consegui diminuir e espero reduzir mais um pouco. Sou atendido por uma equipe: um ínfectologista, um oncologista, um cirurgião plástico - precisei fazer enxertos pele, em função das feridas, um psiquiatra e um homeopata.
VEJA - Como o senhor pegou o vírus da Aids?

Strazzer - Tenho minhas suposições, mas não poderia dizer com segurança. Sou bissexual convicto. Minha geração nunca viu limites para o prazer. Mas não sei se fui contaminado por uma relação com homem ou mulher.
VEJA - Sua ex-mulher e filhos fizeram o exame anti-HIV?

Strazzer - Fizeram e está tudo bem, graças a Deus.
VEJA - Sua última aparição na TV foi uma participação especial na minissérie 0 Sorriso do Lagarto. É díficil ser ator, estar com Aids e aparecer na TV?

Strazzer- Diante da produção difícil que é a de uma novela, ou mesmo uma minissérie, que exige tempo, disponibilidade, saúde, acho que os produtores, diretores e autores ficam constrangidos em me escalar e de repente eu não dar conta.
VEJA - O senhor acha que devia ser escalado?

Strazzer - A televisão faz parte da minha vida há mais de vinte anos. Sinto falta, sem dúvida. Mas não gostaria que alguém pensasse "vamos dar para aquele infeliz que está com Aids um papel para ele aparecer um pouco". Pelo amor de Deus, não pode ser isso. Se houver uma oportunidade interessante, posso ser aproveitado de várias maneiras que não seja na frente das câmaras. Uma pessoa doente é incômoda, desagradável. Quem lida com o doente acaba refletindo sobre sua própria vida e morte. Quando as pessoas deparam com um doente como eu, ficam assustadas. Eu encontro às vezes pessoas que são muito queridas e que preferiam francamente não ter me encontrado, ter fingido que não me viram.
VEJA - Como essas pessoas podem ser queridas se agem dessa forma?

Strazzer - Eu aprendi a amar apesar de, e não porque a pessoa é legal contigo. Isso não foi do dia para a noite, é claro. Tive momentos de muita raiva, ira e ressentimento. Mas conquistei o aprendizado de que as pessoas têm prioridades. Não sou prioritário na vida de todos que eu amo. Mas sou na vida de meia dúzia - e que bom que existe essa meia dúzia.
VEJA - Foi duro descobrir que não era prioritário na vida de pessoas queridas?

Strazzer - Sei que há pessoas que me querem muito bem, mas que têm uma série de outras prioridades que não são cuidar de um amigo doente. Isso me permitiu fazer um balanço sobre quem eu realmente gostava. Fui obrigado a perdoar de verdade. Houve gente que era muito amiga e não deu sequer um telefonema, e gente pouco íntima que apareceu de surpresa no hospital. Fui aprendendo a lidar com a hipocrisia humana. Não ia ficar ressentido, amargo. Fiquei, sim, decepcionado com algumas pessoas a quem eu queria muito. Então, passei a querer mais equilibradamente.
VEJA - O senhor estava envolvido sentimentalmente com alguém quando descobriu que estava com Aids?

Strazzer - Estava no fim de um relacionamento. Essa pessoa ficou comigo um tempo, depois se afastou. A gente tem que respeitar os limites do outro. Não dápara querer que o outro seja onipotente, tenha condições de corresponder o tempo todo às nossas expectativas. 0 outro tem defesas, medos, fragilidades e limites que tenho de compreender e aceitar. Claro que nem sempre consigo essa simplicidade linear. Mas é o meu objetivo nas relações com as pessoas e o mundo.
VEJA - O senhor tem mantido uma vida sexual?

Strazzer - Não. Tive uma absoluta falta-de interesse durante muito tempo. Depois, um absoluto interesse durante muito tempo, mas não me sentia à vontade para ter relações com ninguém, embora houvesse até pessoas disponíveis. Achei que devia transcender um pouco isso.
VEJA - E a esperança de cura?

Strazzer- Já pensei muito nisso. Faz um tempo que não penso mais. Às vezes, acho que estou indo embora. A cura não é mais um núcleo de ansiedade e reflexão da minha parte.
VEJA - A convivência com a Aids modificou sua visão artística?

Strazzer - Eu mudei, sim. Compreendo melhor as oportunidades. Antes, achava que as oportunidades que me eram dadas eram naturais. Eu era tão talentoso, inteligente, boa pessoa.. Balela. Depois dessa onda toda, tenho mais a precisão da oportunidade. O meu período de isolamento e reflexão proporcionou determinadas qualidades, uma sensibilidade em relação ao outro, uma compreensão das dificuldades do outro. A peça Dorotéia, que estou dirigindo, tem impressas algumas coisas que me são particulares.
VEJA - O senhor pretende voltar a atuar?

Strazzer - Gostaria de montar um espetáculo no qual eu recitasse alguns poetas místicos, como os persas Rumi e Attar e os espanhóis São João da Cruz e Teresa d'Avila. Seria uma encenação com uma bailarina, um instrumento, uma coisa simples de meia hora de duração. São poemas belos, que falam sobre a noite escura:
Vivo sem viver em mim e tão alta a vida espero que morro e por que não morro?"
É um universo que eu conheço, de delicadeza sobre a morte e a espiritualidade.
VEJA - O trabalho ainda é uma motivação forte?

Strazzer - Sim, mas eu não sou mais o mesmo. Isso é difícil de lidar para quem gostaria que eu fosse o mesmo. 0 trabalho me motiva quando não existe essa expectativa, como aconteceu em Dorotéia. Foi um bom suporte terapêutico. As pessoas já sabiam da minha doença e eu coloquei o problema para elas. Durante os quatro meses de ensaio, tive que parar duas vezes para fazer pequenas cirurgias. Quando as pessoas aceitaram participar da peça, pensaram bem no que significava trabalhar comigo.
VEJA - Como o senhor está hoje fisicamente?Strazzer- Entre outras doenças, tenho câncer. Às vezes, ele se manifesta na pele. Tive que tirar alguns tumores no nariz. É uma vida dolorosa. É preciso querer muito viver. Se não, dá vontade de dizer até logo.
Nascimento:04/08/1946,São Caetano do Sul, São Paulo Falecimento: 19/02/1993, Petrópolis, Rio de Janeiro.